Por Wilton Sales.
Ao se aprofundar na história política do Ceará do século XIX, descobre-se um cenário de disputas ferozes por poder, onde o sertão se torna palco de uma guerra entre elites locais e a autoridade central. Em meio a essa batalha, a figura de José Martiniano de Alencar, então presidente da província, se destaca como o líder que tentava impor a ordem “civilizada” sobre o que ele via como um sertão de anarquia e barbárie.
Na outra ponta, a família Mourão, influente e temida, resistia a essa tentativa de controle, exercendo seu poderio na região da vila Príncipe Imperial (atual Crateús) até São Gonçalo (atual Matriz de São Gonçalo Ipueiras). A rivalidade entre Alencar e os Mourões acabou por se transformar em um verdadeiro embate entre a força do Estado e as elites locais. Mas o que estava realmente em jogo? O discurso oficial nos apresenta uma história de “heróis” e “bandidos”, mas a realidade, como sempre, parece bem mais complexa.
José Martiniano de Alencar não era apenas um líder qualquer; ele era uma figura política habilidosa que conseguiu centralizar o poder e formar alianças estratégicas. Ao chegar à presidência do Ceará, em 1834, ele buscou pacificar o sertão, mas enfrentou a resistência dos Mourões, que, com suas influências locais e suas “tropas” armadas, não estavam dispostos a ceder facilmente.
Para justificar suas ações contra a família Mourão, Alencar e seus aliados disseminaram uma imagem dos Mourões como “criminosos” e “valentões” que ameaçavam a ordem. A narrativa que se construiu foi a de um Ceará em estado de anarquia, onde Alencar emergia como o herói que traria a paz e a civilização. Essa construção do mito de Alencar como “Salvador do Ceará” acabou sendo perpetuada por sucessores políticos, criando uma memória que ainda ecoa no imaginário popular.
A família Mourão, no entanto, não era apenas uma força bruta no sertão. Eles tinham alianças sólidas, terras, e representavam um poder local que desafiava a autoridade de Alencar. Essa resistência local não era incomum no Brasil imperial, onde muitas famílias poderosas viam na autonomia local uma forma de manter suas influências intactas frente ao centralismo do governo.
O confronto entre Alencar e os Mourões revela, portanto, uma batalha por controle. Alencar, ao perceber que não conseguiria os Mourões como aliados, decide extirpar sua influência. Ele usa a máquina estatal para perseguir a família, tentando enfraquecer seu poderio. Ao mesmo tempo, legitima suas ações com um discurso de combate à barbárie e de estabelecimento de uma nova ordem.
O legado de Alencar como um herói e dos Mourões como bandidos foi, em grande parte, moldado por historiadores alinhados com o poder central. Paulino Nogueira, Eusébio de Sousa e outros contribuíram para essa visão, difundindo uma versão da história que criminalizava os Mourões e glorificava Alencar. Mas essa é uma versão simplificada de uma história bem mais complexa, onde os Mourões eram, na verdade, atores políticos que defendiam seus interesses e suas terras.
Esse caso serve para refletirmos sobre como a história e a memória são construídas. Muitas vezes, heróis e vilões são forjados para atender a interesses específicos, e as narrativas que herdamos carregam as marcas das disputas e alianças que as moldaram. No fim, o que se vê no Ceará oitocentista é um exemplo de como o poder busca não só controlar o presente, mas também moldar o passado e, com ele, o imaginário das futuras gerações.
A história dos Mourões e de José Martiniano de Alencar ilustra o quanto os mitos políticos podem ser poderosos e reveladores. Ao revisitar essas histórias, podemos desafiar as narrativas simplistas e entender melhor as forças que moldaram o Ceará e o Brasil. É uma lembrança de que, no campo da memória, a verdade muitas vezes é mais complexa do que parece, e o mito pode, por vezes, mascarar uma realidade de disputas e resistências locais.
Fonte: Fonte de pesquisa: O Bacamarte dos Mourões. Nertan Macedo. Instituto do Ceará. 1966.